Reconstrução
Dias atrás estava no escritório e uma senhora com cerca de 60 anos, dona Berenice, fora me visitar. Ela havia conseguido a guarda de uma linda moça chamada Ana. Recebendo-as, notei que a garotinha detinha de algum desenvolvimento mental incompleto. Olhava para cima, para baixo, mexia em algumas canetas. Dona Berenice, mais branda e ao mesmo tempo apreensiva com qualquer conduta indesejada de sua pupila, olhou a mim e então eu pude indagá-la sobre se poderia ajudá-la em algo. Ela meio tímida respondeu que sim e começou a narrar alguns fatos. Enquanto ela me explicava o que levara a um escritório de advocacia, não pude deixar de continuar a observar Ana - morena, 14 anos, olhos escuros e ternos - . Aprisionada, mas ao mesmo tempo livre em seu mundo pessoal, um universo mental adornado, mais cheio de mistérios e fantasias que o nosso - ousei a concluir. Havia, nitidamente, mais encanto, era mais lúdico, mais possível e humano sem dúvida.
Elas necessitavam de um benefício previdenciário e me procuraram para tanto. Dona Berenice não soube me explicar nada do que indaguei e então pedi para ver à documentação que estava sobre a mesa, numa pasta transparente, meio antiga. Após uma breve leitura, coletei os dados necessários para ajuizar a ação. Enquanto fazia aquilo, Ana ainda continuava brincando com as mãos, falando alguma linguagem que ela certamente sabia, mas que para mim era inteligível.
Terminando o trabalho de gente grande, perguntei:
- Ana, você estuda, está na escola, você sabe ler e escrever, Ana?
No que ela olhou e respondeu:
- Sim. Tô na escola e aprendi a escrever o "a"... mas esqueci.
Deus, que súbita vontade de passar a manhã inteira conversando com Ana. Estava louco para desvendar sobre os encantos daquelas mãos, daqueles lápis, teto e paredes...
Não parei:
- Como assim esqueceu o "a", Ana?
- Mas amanhã eu lembro de novo, disse entusiasmada.
Após algumas orientações, dona Berenice e a jovem Ana levantaram-se em suas pobrezas materiais, não se importando com os pés sujos de poeira e unhas sujas de carvão.
Enquanto acompanhava-as até a porta, Ana cutucou dona Berenice e perguntara qual o meu nome:
- Doutor, o nome dele é doutor...
Aí então, Ana grita da porta da sala:
- Doutor, você sabe fazer o "a"?
Eu fiz um sinal de positivo com o polegar e pensei comigo: não, Ana, eu não sei. Não sei fazer o seu "a", não sei ser misterioso e mutante. Na verdade, estou preso a um mundo de "as" fixos, rígidos e perpétuos. Num mundo letrado de tolos, doutores vaidosos e letristas pouco razoáveis. Um mundo que, certamente, você não vai gostar de conhecer, Ana. O meu "a" não chega ao chinelo do seu.
Esperei-as partir e bati a porta.
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